“Nasceu com o dom da escrita!”
Ora aí está uma frase que a propósito de alguns excelentes autores se ouve e possa ao mais descuidado dos leitores fazer algum sentido.
De facto, existem alguns que desenvolveram aquilo que podemos chamar de “dom”, mas que na verdade mais não é do que uma capacidade hiperdesenvolvida na área da escrita.
Assim, desengane-se quem acha que um escritor nasce com um dom, porque na realidade nenhum de nós nasce a escrever, mas somos todos potenciais escritores.
O que difere de uns para os outros, para aqueles que são considerados escritores, autores de referência, está o facto de serem escritores altamente competentes.
Mas o que nos torna em escritores? O que torna uma criança escritora?
Todas as crianças, todos nós somos escritores. Seres escreventes. Porque é disso que se trata. Saber escrever.
Contudo, falar de escrever obriga a compreender a dependência direta com a leitura. Escrita não existe sem leitura. Existe uma influência recíproca sobre o processo que é a linguagem escrita e que se reflete na leitura como a sua vertente recetiva e a escrita como vertente expressiva dessa linguagem (Alves, R., 2020).
Existe um conjunto de competências que levam estes potenciais pequenos escritores a desenvolverem mecanismos que lhes permitem desenvolver ambos os domínios em simultâneo e com uma interdependência impercetível para a criança em idade escolar.
Essa diversidade de competências leva a que a criança compreenda as funções e processos de leitura e consequentemente de escrita (Whitehurst & Lonigan, 1998).
Assim, e de um modo simplista podemos considerar seis competências fundamentais: competências cognitivas, sensoriais, linguísticas, ambientais, psicomotoras e individuais.
Consideradas por vários autores como as relacionadas com a atenção e memória e que reflete a existência de um processo visual direto, naquilo que Mendes & Brunoni (2015) referem, apoiados em estudos de Frith, como sendo “dupla rota” em que a criança será tanto melhor leitora quanto maior for a sua capacidade de processar informação fonológica e representação gráfica.
Estas plasmam-se nos sentidos, na capacidade da criança ouvir, descriminando sons e proveniências do som, na capacidade de ver e distinguir elementos gráficos, na sua maior ou menor perceção visual sobre o que a rodeia e na forma como esta perceção se interliga com a perceção auditiva.
Existe assim uma dependência entre a discriminação dos sons enquanto fonemas e a sua perceção visual na associação ao grafema.
Numa abordagem mais simplista podemos referir tratar-se de competências de ordem semântica, fonológica e de consciência fonológica, intimamente ligadas ao modo como a criança processa os sons que ouve e que reproduz (Capovilla & Capovilla, 1997).
É um conjunto de atributos desde a perceção global do tamanho da palavra e de semelhanças fonológicas entre as palavras até a segmentação e manipulação de sílabas e fonemas, que pressupõe um conjunto de operações mentais de processamento de informação baseadas na estrutura fonológica da linguagem oral.
Refere-se tanto à consciência de que a fala pode ser segmentada, assim como se refere à capacidade de manipular esses segmentos e que se desenvolve gradualmente na criança conforme esta se vai consciencializando do sistema sonoro da língua, como unidades identificáveis: palavra, sílaba, letra.
Sabemos que os fatores ambientais têm particular influência sobre o desenvolvimento da criança e consequentemente sobre os diferentes processos de aprendizagem. Sobre isto, Bronfenbrenner (Martins, E., Szymanski, H., 2004) apresenta no seu Modelo Bioecológico a estrutura de fatores ambientais que influenciam e como influenciam o desenvolvimento cognitivo na criança. Posso referir que existe, dentro desta visão, uma interligação entre as competências ambientais e as cognitivas que vão potenciar o desenvolvimento do processo de leitura e escrita e com isso tornar a criança mais ou menos competente.
Fatores como apoio da família, adaptação ao ambiente escolar, interação com o educador/professor, crenças, recursos do meio têm um peso significativo neste processo, tal como sustentam vários autores entre eles Santos, Anderle & Neto, Barreira & Maluf, Capovilla & Capovilla referidos por Mendes & Brunoni (2015).
Quando pensamos em competências psicomotoras o que imediatamente nos surge no pensamento é a necessidade de desenvolver na criança noções topológicas, de tempo e espaço, desenvolver atributos que permitam a criança definir e identificar a lateralidade em si, em objetos e em representações gráficas, bem como ter bem ativada a consciência do corpo, do seu corpo.
A importância do estímulo destas competências é essencial desde os primeiros dias de vida e ao longo da primeira infância. Daí o quão importante ser o papel da Educação Pré-Escolar na ativação de estruturas potenciadoras da leitura e consequentemente da escrita sem a necessidade de escolarização. Mas este seria um outro tema a abordar.
Neste artigo ficámos apenas pela reflexão da necessidade de estímulo o mais precoce possível e da efetiva necessidade fornecer à criança espaços seguros para o desenvolvimento das mesmas, de forma mais ou menos estruturada e com recurso ao jogo infantil (Solé, M. B., 1992).
Mais uma vez se identifica a co-dependência entre as diferentes competências.
Como bem diz a palavra “individuais” estas são aquelas que dependem apenas da criança e que por isso mesmo variam de criança para criança. Não dependem de ninguém, nem de nada.
Tratam-se daquelas assentes na motivação da criança, na sua criatividade e disponibilidade para se envolver no processo.
Ora, perante tudo isto, é caso para dizer que ser um bom leitor ou escritor, ou ambos, não é um dom. É um processo dependente de mecanismos que promovem o desenvolvimento destes dois processos interligados.
A criança será sempre um leitor e saberá escrever, mesmo que por vezes e em casos muito específicos, não utilize exatamente os mesmos códigos de linguagem escrita expectável.
Mas também este seria outro tema de conversa.
Capovilla & Capovilla (1997). Treino de Consciência Fonológica e seu impacto em habilidades fonológica, de leitura e ditado de pré 3 a 2ª série. Ciência Cognitiva: Teoria, Pesquisa e Aplicação, 1(2), 461-532.
Martins, E., Szymansky, H. (2004). A abordagem ecológica de Urie Bronfenbrenner em estudos com famílias, In: Estudos e pesquisas em psicologia: UERJ(2004), ano 4, n.º1, pp.66-77. Rio de Janeiro.
Mendes, ECCS., and Brunoni, D. (2015). Competência em leitura: interface entre contextos psicossocial, familiar e escolar [online]. São Paulo: Editora Mackenzie
Solé, M. B. (1998). O Jogo Infantil: Organização das Ludotecas. Lisboa: IAC
Whitehurst, G. J., Lorigan, C. J. (1998). Child Development and Emergent Literacy. In: Child Development. Vol. 69, n.º 3, pp. 848-872
Sandra Lima
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