(A peça desenvolve-se numa barraca de fantoches de luva, com janela ou numa estrutura que permita apenas a visualização da mão e pulso. No início da cena está apenas o cenário. Após uma música inicial, instrumental e alusiva ao som do mar entra o Indicador acompanhado do Mindinho. Ambos estão construídos a partir de uma luva branca, onde estão bordados ou pintados olhos, boca e cabelos. O Indicador leva uma pequena boina.)
Indicador (movimentando-se o dedo indicador da mão direita, dando a entender movimento em direção ao público) – Hoje temos connosco no programa “Dois dedos de Conversa com…” uma das personagens da história “O Beijo da Palavrinha” de Mia Couto.
Mindinho (dirigindo o discurso ao Indicador e fletindo-se dando a entender a fala) – Pensei que íamos entrevistar o escritor?
Indicador (abanando o dedo indicador em sinal de reprovação para a direita e esquerda com rapidez) – Não comeces! Desculpem o meu irmão que ainda é novato nestas andanças. (parando o movimento e dirigindo-se ao público, fletindo as falanges)Connosco, hoje, e em estreia para o mundo, Poeirinha. Peço-vos uma salva de palmas para ela!
(Neste momento entra Poeirinha. É um fantoche de luva, com tecidos em tom de azuis aludindo ao mar. A cabeça está coberta de uma farta cabeleira encaracolada, castanha tal como o seu rosto. Está suportada pelo manipulador pela mão esquerda.)
Indicador (fala fletindo as falanges ao ritmo das palavras) – Bom dia Poeirinha! Sou o Indicador e vou ter o gosto de te entrevistar e perce…
Mindinho (em tom de desafio e movimentando as falanges energicamente) – Na verdade, quem vai ter esse gosto sou eu! O meu irmão gosta muito de se indicar como o favorito só porque eu sou o mais pequeno, mas…
Indicador (em tom aborrecido, abanando as falanges para a esquerda e direita, assinalando desacordo) – Nada disso, Mindinho. Sabes bem que não estás preparado para uma entrevista desta importância. (acalmando-se e colocando um tom de voz doce e sereno) Poeirinha, mil desculpas pela inconveniência do meu irmão mais pequeno.
Mindinho (em tom exaltado e em movimentos enérgicos) – Não sejas assim, Indicador. Lá por ser pequeno não quer dizer que não esteja à altura da tarefa! Afinal é só fazer perguntas!
Poeirinha (o manipulador roda o pulso para a direita, com voz doce e muito calma, soltando um leve riso divertido) – Vá, vá, meninos…Nada de zangas.
Mindinho (em tom divertido e fletindo as falanges, acompanhado por um movimento de rotação do pulso executado pelo manipulador para o lado esquerdo, ficando a 1/3 de rotação) – Vês! A Poeirinha percebe-me bem. Afinal são só perguntas. Poeirinha, como está o teu irmão?
Indicador (em tom exaltado) – Que disparate, Mindinho. (o manipulador faz um movimento de rotação do pulso para o lado esquerdo, ficando a 1/3 de rotação fala calmo com movimentos suaves das falanges) Não lhe ligues, por favor. (voltando à posição inicial dirige-se ao Mindinho em tom imperativo) Deves começar a entrevista pelo início e dirigida à Poeirinha que é a nossa entrevistada. Podemos começar?
Poeirinha (em tom de voz divertido e bastante enérgica) – Claro que sim.
Indicador (acompanhado por um movimento de rotação do pulso para o lado esquerdo executado pelo manipulador, ficando a 1/3 de rotação fala calmo com movimentos suaves das falanges) – Quando lemos a tua história ficamos muito impressionados com a simplicidade do teu nome.
Mindinho (em sussurro num desabafo para o público) – Mas eu não li a história…
Indicador (acompanhado por um movimento de rotação do pulso para o lado direito, ficando a 1/3 de rotação erguendo bem o dedo) – Shiuuu! (acompanhado por um movimento de rotação do pulso para o lado esquerdo, ficando a 1/3 de rotação fala calmo com movimentos suaves das falanges) Como dizia… Poeirinha o teu nome impressionou pela sua simplicidade. Queres explicar-nos melhor a origem dele?
Poeirinha (em tom muito calmo, a gesticular e muito expressiva com a cabeça, voltada para o público) – Sim. Chamo-me Maria Poeirinha. Como sabem nasci numa aldeia de pouca vegetação e onde a terra é seca. A areia escalda e o verão costuma ser muito quente. Por vezes há ventos fortes que levantam poeiras que rodopiam, rodopiam como se dançassem (neste momento o manipulador roda o pulso esquerdo para um lado e para o outro simulando uma dança) em torno de nós. (o manipulador para o movimento voltando a Poeirinha para o público) No dia em que nasci ventava muito e a poeira rodopiava no ar. A minha mãe olhou-me nos olhos e nesse momento viu neles castelos de areia desenhados. E assim decidiu que eu haveria de me chamar Maria Poeirinha.
Mindinho (o manipulador aproxima um pouco o dedo mindinho do dedo indicador) – Oh, Indicador! Pensei que se chamava só Poeirinha.
Poeirinha (acompanhado por um movimento de rotação do pulso para o lado direito, ficando a 1/3 de rotação fala para os dois irmãos) – Também sou Maria. O meu irmão é que me chama assim…Poeirinha.
Indicador (em tom coloquial para Poeirinha) – Fala-nos um pouco do que gostas de fazer, como ocupas os teus dias.
Mindinho (em sussurro num desabafo para o Indicador, o manipulador aproxima um pouco os dedos) – Mas que ideia tonta, Indicador. Vai dizer que vai à escola e isso não tem nada de interessante!
Indicador (em tom imperativo e esticando bem o dedo indicador) – Shiuuu. Não estás a ajudar nada à entrevista. (em tom suave acompanhado por um movimento de rotação do pulso para o lado esquerdo, ficando a 1/3 de rotação)Desculpa, Poeirinha.
Poeirinha (voltada para o público em tom determinado e triste) – Eu não vou à escola. Melhor…Nunca fui à escola.
Mindinho (em tom de indignação voltado para o público) – Ai não??????
Poeirinha (voltada para o público em tom triste) – Onde nasci as escolas não são como as vossas e na minha aldeia não havia escola.
Mindinho (voltado para o público muito curioso) – Que sorte!!! Então o que fazias? Como aprendias?
Indicador (estica o dedo muito e em tom imperativo) – Shiuuuuuuu!!!!
Poeirinha (continua voltada para o público balanceando um pouco o corpo e gesticulando como a explicar) – Como não havia escola na aldeia aprendi com a natureza e com as pessoas mais velhas.
Indicador (em tom intrigado e o manipulador aproxima um pouco o indicador de Poeirinha) – E não foste para outra escola noutra aldeia?
Poeirinha (o manipulador roda a Poeirinha para a direita e em tom desolado fala) – Não. As aldeias são distantes umas das outras e eu sempre fui frágil, de corpo franzino e os meus pais sempre recearam que eu ficasse doente.
Mindinho (em sussurro em tom de desabafo para o público) – Só eu não tenho essa sorte! Sou pequeno e mesmo assim mandam-me à escola!
Indicador (aproximando-se do Mindinho e em tom exaltado com o dedo bem esticado) – Aí, Mindinho! Ficavas bem era caladinho! (o manipulador volta a aproximar o indicador de Poeirinha e em tom suave) Então como te ocupavas durante o dia, Poeirinha?
Poeirinha (voltada para o público, gesticulando como quem explica) – Passava os meus dias a sonhar, a construir castelos de areia e a imaginar como seria o mar. Às vezes sonhava que era um rio e que seguia nele até o encontrar.
Mindinho (em tom curioso) – Então não conheces o mar?
Poeirinha (voltando-se para os irmãos e soltando um risinho) – Conheço, mas nunca o vi.
Mindinho (aproximando-se do Indicador) – Isso não é possível. Que disparate.
Poeirinha (voltada para o público, em tom divertido e gesticulando como se estivesse a explicar) – É possível, sim. Conheci-o numa palavra. E senti-o com os meus dedos. As suas ondas no “m”, as suas gaivotas e o seu som no “a” e os rochedos e rochas no seu “r”.
Mindinho (voltando-se para o público em tom exaltado) – Isso é uma tontice!
Indicador (acompanhado por um movimento de rotação do pulso para o lado esquerdo, ficando a 1/3 de rotação e em tom envergonhado) – Desculpa o meu irmão. Será que nos podias explicar como isso foi possível?
Poeirinha (ainda voltada para o público, gesticulando e ainda em tom divertido) – Pouco tempo antes de eu me juntar ao mar, de me afogar na sua palavra, o meu irmão mostrou-me o mar com os dedos e eu consegui senti-lo e percebê-lo.
Mindinho (aproximando-se do indicador para simular aproximação à Poeirinha, em tom curioso) – Afogaste-te?
Indicador (em tom zangado e o manipulador abana o dedo para um lado e outro em sinal de reprovação) – Mindinho, aí, aí, aí! Não vamos falar de coisas tristes nesta entrevista.
Poeirinha (o manipulador volta a Poeirinha para os dedos e fala em tom explicativo) – Não faz mal. Não é triste. Sim. Afoguei-me na palavrinha mar e vivo nela desde então. E agora desde que o descobri percebo o que o meu tio queria dizer.
Mindinho (voltado para o público fletindo as falanges e curioso) – E que dizia ele?
Poeirinha (voltada para o público em tom maternal e gesticulando) – Dizia que toda a ignorância, fome e solidão existiam porque tínhamos falta de maresia.
Mindinho (o manipulador roda o dedo mindinho várias vezes em torno de si próprio voltado para o público) – Que confusão! Já estou zonzo como o teu irmão!
Indicador (voltado e inclinado para o público) – Podes explicar melhor?
Poeirinha (voltada para o público em tom maternal e gesticulando) – Se pudéssemos ver o mar, saíamos da aldeia e conhecíamos outras terras outras pessoas. Aprendíamos mais!
Mindinho (o manipulador volta a inclinar o dedo mindinho para o lado esquerdo e usa tom curioso) – Mas afinal tu afogaste-te porquê?
Indicador (o manipulador roda um pouco o pulso para o lado esquerdo e fala em tom envergonhado) – Não lhe ligues, Poeirinha. Este Mindinho não sabe o que pergunta.
Poeirinha (voltada para o público em tom explicativo, gesticulando bastante) – A pergunta não é tonta. Afoguei-me porque estava muito doente, porque me faltava tudo. Faltava-me conhecimento. Quando decidiram levar-me para o ver já não me conseguia levantar e afoguei-me quando senti o mar nos meus dedos.
Mindinho (o manipular inclina-o para o Indicador em tom de sussurro) – Mas que ideia disparatada! Tinhas mesmo que entrevistar uma personagem de uma história tão triste, Indicador?
Poeirinha (o manipulador roda o pulso para a direita voltando a Poeirinha para os irmãos) – Não é triste. Estou no sitio certo. No meio de uma palavrinha que é o mar.
Indicador (o manipulador roda o pulso na direção da Poeirinha) – Obrigado pela entrevista, Poeirinha. Foi muito bom conhecer-te melhor e à tua história.
Poeirinha (voltada para o público em tom firme) – A história não é minha. Eu só sou uma personagem frágil, doente, cheia de vontade de conhecer o mundo e muito sonhadora.
Mindinho (o manipulador aproxima o dedo mindinho de Poeirinha) – Achas que o teu irmão aceitaria ser entrevistado?
Poeirinha (primeiro voltada para o Mindinho e depois voltando-se para o público vai desaparecendo de cena) – Não sei, Mindinho. Mas se o vir digo-lhe para falar contigo. Agora vou andando que a palavrinha já chama por mim.
(Com a saída de cena de Poeirinha recomeça a música instrumental do início e os dois irmãos saem de cena.)
Sandra Lima
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