Era uma vez o Amor e um livro

Quando decidi escrever este texto veio-me à ideia uma imagem de Amor.

Não me foi possivel colocar aqui a imagem que vi desse Amor. Uma imagem real. Tão real que para além de estar na minha memória está num pedaço de papel, daqueles que já ninguém se dá ao trabalho de imprimir e a que ainda chamamos de fotografia, apesar de já não a materializarmos e preferirmos deixá-la digital.

Não a coloquei aqui. Esse amor não cabia aqui, num espaço tão pequeno. Corria o risco de deixar reduzir a beleza dos três a uma simples imagem sem valor para os outros.

Substitui os três, a minha avó e os meus pequenos... quando ainda eram pequenos.

Os três num abraço. No último abraço. O aconchego de quem já não abraçava, a ternura de quem se deixa abraçar e a doçura de quem cuida no abraço.

Este texto que eu queria que fosse de opinião fala de um Amor que só existe quando juntamos as crianças, a literatura e os idosos. Quando nos deixamos levar pela magia da narrativa assente na memória dos mais velhos e experientes.

Este texto que eu quis que fosse de opinião transformou-se num conto de amor.


A minha avó não era letrada, mas era culta. Não era alfabetizada, mas aprendera a ler e a escrever sozinha.

Diziam-lhe que ler e escrever era coisa de homens. Num tempo em que a 1.ª Guerra Mundial tinha acabado de acabar e se esperava na ignorância uma segunda, a minha avó, pequena, obediente, temente a Deus decidiu que ler era coisa de Mulheres.

Observava os rapazes da casa a juntarem as letras, ouvia-os à luz das velas a rezar baixinho as vogais e as consoantes, a juntar sílabas e a ler frases. Depois, no seu silêncio, repetia para dentro cada uma dessas rezas para logo de seguida, junto à lareira, rezar o terço.

Quando deram conta já ela, sem escola, professora ou mestre tinha aprendido a ler. E fazia-o com mestria sempre que apanhava um jornal. Um daqueles que o pai trazia das idas à vila para vender o gado. Era capaz de estar ali horas de volta de uma única folha de jornal a treinar a arte de juntar letras.


O primeiro livro de histórias que lhe lhe cruzou os olhos foi a bíblia. E leu-a.

Nunca foi à escola. Aprendeu sozinha. E lia de tudo.

Escrever é que era pior. Havia que desenhar as letras muito bem e treiná-las... quando apanhava um pouco de carvão ou, se tivesse sorte um pequeníssimo pedaço de grafite que ficava caido no chão da venda da aldeia. Treinava no que podia. Num resto de papel qualquer, já amarfanhado do uso que lhe tinha sido dado.


Não demorou muito a escrever também.

Mas o livro esse, esse andava com ela. O livro e as histórias.


Quando eu era menina lembro-me de tal como ela aprender a ler e a escrever. Tive quem me ensinasse. Fui à escola. Tive professora. Professores. Tive mestre. Mestres. Naquela altura não li a Bíblia, mas tive livros. Coisa que a minha avó não teve.

Recordo sentar-me no chão da sala e estar a ler pequenas histórias em pequenos livros coloridos. E recordo-me de sorrir quando ela, do alto dos seus 70 anos, me pedia um desses pequenos livros.


"Oh, menina... chega-me ai esse livro. A ver se não me esqueço como se lê!"


Sim. Porque histórias sabia ela muitas.

Contava-me histórias da terra. De tempos antigos, de tempos mais modernos e de quando em vez dizia-me:


"Oh, menina... tu é que podias escrevê-las. Um dia ainda me vou esquecer delas."


Mas não esqueceu e eu guardei-as.

Guardei-as onde não as pudesse perder. Em mim. No meu coração. Porque as histórias contadas com Amor é aí que se guardam. Como todas as histórias para a infância. Para as crianças.


Os livros e histórias para crianças, infantis, são um legado de Amor, que os mais idosos, experientes nos deixaram. Não apenas como um registo oral ou escrito de um passado, mas como mensagens de Amor, de afeto, de preparação para a Vida.

Cada idoso, ancião... como lhe quiserem chamar... é um depósito vivo de histórias... livros à espera que alguém os olhe, lhes toque e os queira folhear... à espera de que haja quem queira ouvir o que cada ruga, cada mancha, cada vacilar da voz tem para contar.


Este, que era para ser um texto de opinião, decidiu ser um conto de amor e de livros... vivos...


E começa exatamente assim. Era uma vez o Amor e um livro.

Sandra Lima