Era suposto… expectável para alguns de vós verem aqui uma grande reflexão em torno da Mulher… Quem sabe alguns de vós até esperariam uma enorme homenagem a grandes vultos femininos da história… vá… vou até “puxar a brasa à minha sardinha” e atrever-me a dizer que alguns de vós esperariam uma grande referência a escritoras, portuguesas, claro está… de literatura infantojuvenil.


Consigo imaginar-vos nesses tais pensamentos e quase vos consigo apanhar, no ar, o nome de Matilde Rosa Araújo, Rosa Lobato Faria, Ilse Losa, Alice Vieira, Luísa Ducla Soares, Irene Lisboa…


Sim! Claro… mais uma grande Mulher da Literatura Infantojuvenil que vos assalta o pensamento… mesmo agora… Sophia de Mello Breyner Andersen!


Ah! E então esses de vós que recordam neste exato momento as aventuras de Ana Maria Magalhães e Isabel Alçada???

Peço-vos que parem e que não pensem mais!

Se continuarem assim inundam o espaço em vosso redor com tantas Mulheres talentosas e que tão bem escreveram, escrevem e continuarão a escrever para crianças… Ana Luísa Amaral, Catarina Sobral, Sara Monteiro, Rita Vilela, Margarida Fonseca Santos… Já para não falar nos novos talentos femininos… Tantas… Tantas!


Mas não! Não vos vou falar destas Mulheres extraordinárias que me marcaram a infância e a adolescência, nem dessas outras não menos Mulheres, nem menos extraordinárias que me atiçaram a vontade de perder a vergonha. Não!


Vou falar-vos de outra, de outras.


Dei por mim, por estes dias, a ler Agustina Bessa-Luís… mais uma vez… só porque sim… Aforismos.

Sim. Agustina. Essa Mulher responsável por um dos maiores romances da história da literatura portuguesa, “A Síbila”. Nesta e noutras das suas obras deu um papel preponderante às Mulheres, mostrando-as em toda a sua complexidade… Maculadas. Humanas. Desumanas, por vezes. Austeras. Doces. Submissas. Independentes… as que podiam. Amantes. Guerreiras. Mulheres… enfim!


E sim, lembrei-me das vezes que escreveu para crianças. Poucas. Agustina, hoje foi o meu primeiro pensamento do dia…à conta do que escreveu para as crianças.

Recordei em especial o seu conto “Dentes de Rato”. Também é uma Mulher a personagem principal. Lourença. Menina-Mulher, digamos assim. Um conto onde claramente fica evidente a irreverência desta Menina-Mulher e os vários desconfortos com que tem de lidar no seu quotidiano perante o manancial de regras, que supostamente, haveria de cumprir, e os inúmeros comportamentos sociais, “adequados”, que era expectável manifestar, de acordo com os adultos.


Foi Agustina o meu primeiro pensamento do dia e a minha Avó Materna!

Parece-vos estranho? O que tem de comum a minha Avó Materna com a Agustina Bessa-Luís?

Nada. E tudo!

Para além da macieza da pele, da doçura, por vezes enganadora, do olhar e da irreverência e independência das atitudes, a minha Avó Materna e a Agustina Bessa-Luís pouco ou nada tinham em comum.


No entanto, a minha Avó Materna, uma pseudo-analfabeta…


“Permitam-me um aparte… digo-a assim porque foi daquelas Mulheres nascidas no início do século passado a quem foi recusado o direito à instrução, simplesmente, por ser Mulher, e aprendeu a ler e a escreve sozinha, à revelia dos costumes e tradições da época, às escondidas, enquanto observava os rapazes, Homens, a rabiscarem e a soletrarem em voz alta aquelas que seriam palavras em frases… Uma autodidata dos escrevinhanços e das leituras à luz de vela, nos recantos de um quarto, partilhado com as outras Meninas-Mulheres da casa, que lia jornais, revistas e pequenos livros… uma autodidata para que os Homens não fossem capazes de a enganar nos negócios da família…”


… podia ser uma das mais complexas personagens de Agustina pela sua imensa simplicidade.

Agustina Bessa-Luís escrevia Mulheres extraordinárias em folhas de papel e gravou-as a todas em contos, romances, ensaios e peças de teatro.


A minha Avó Materna não as escreveu.

Inscreveu-se. Inscreveu-se no coração de tantas, tantas outras, de muitas outras Mulheres extraordinárias pelo seu modo doce de lutar pela sua existência, pelo seu modo calado de persistir, pelo seu modo assertivamente sereno de se mostrar igual numa sociedade onde a Mulher tinha um papel secundário.


Mas estas histórias da minha Avó Materna, de dor, luta, sobrevivência, conquista, amor e muita alegria, ficam para quando eu tiver a sua coragem.

Porque na verdade…

Há Mulheres Extraordinárias e depois… Há a minha Avó!

Sandra Lima