Falava-vos então da minha biblioteca no BC9. Esta coisa das duas letras e um número acho que ficou esclarecida na parte 1 (aproveito para sugerir a leitura dessa parte, se ainda não a leram… até porque me parece que a minha biblioteca gostaria que a lessem à luz da memória de uma ex-pequena frequentadora assídua e ávida leitora… vulgo criança).
Quando atravessava o quartel exatamente no oposto à entrada dele havia umas escadas íngremes. Nunca percebi muito bem se eram apenas de madeira, se de pedra ou se estavam revestidas a carpete. Era algo que se usava muito naquela época. Umas escadas interiores que davam acesso ao segundo andar. Ficavam do outro lado do espaço que os grupos de teatro amador da cidade usavam para ensaios e apresentações.
Para além de íngremes tinham uns degraus enormes, altos. Na altura os adultos diziam-me que tinham um “espelho alto”. As escadas, claro! Lembro-me de olhar para as elas, confusa, e a cada puxada de perna para avançar mais um daqueles enormes degraus perguntava-me onde estariam os tais espelhos. Não demorei muito tempo a perceber ao que se referiam. Eram de facto bastante altos para perninhas tão pequenas.
Quando chegava ao cimo parecia que tinha acabado a escalada do Evereste e estava prestes a espetar a minha bandeira da vitória por tamanha façanha!
Contrariamente ao cheiro de ar rarefeito, que deve existir no cimo do Evereste, no topo das escadas havia um cheiro a livros, papel, lápis de cera, tintas e cola. Em vez do silêncio, que calculo que exista ao chegar ao ponto mais elevado do planeta, havia o som de risos, gargalhadas e burburinhos cúmplices.
Ao percorrer o corredor evidenciavam-se três portas, seguidinhas, de madeira tosca que estavam sempre fechadas. A cor delas? A minha memória traz-me um cinza… às vezes um esverdeado confuso… Não creio que a cor das portas seja neste momento muito importante e acredito que os ex-pequenos frequentadores da minha, nossa, biblioteca vos saibam falar sobre esses pormenores.
Interessa saber é que assim que rodava a maçaneta de qualquer uma das portas acontecia magia. Fosse a primeira, a segunda ou a terceira porta… magia.
A minha biblioteca infantil, era extraordinária. Como vos disse era muito mais do que só e apenas uma biblioteca infantil. Os vianenses e ex-pequenos frequentadores assíduos leitores na minha biblioteca infantil poderão confirmar-vos isso.
No corredor, em frente de qualquer uma das portas, eu nunca sabia o que estava do outro lado. Claro que cada porta levava a um espaço distinto. Claro que cada porta guardava um mundo diferente. E claro que eu já lá tinha entrado imensas vezes, mas de todas as vezes era como se fosse a primeira e não conseguisse sequer adivinhar o que estava para lá daquela porta fechada. Como se do outro lado, e só por pirraça, tudo mudasse de sítio e eu sentisse que era sempre a primeira vez.
Quando rodava a maçaneta da porta e a abria entrava num mundo muito diferente. Ao estreito, despido e escuro corredor dava-se lugar a um espaço amplo, repleto de vida e cheio de luz.
Eram então três salas, que aos olhos de uma pequena frequentadora, assídua e ávida leitora, pareciam enormes. As salas eram contíguas e separadas umas das outras por portas, também de madeira tosca na mesma cor das outras que davam acesso ao corredor. Nesta altura já terão escolhido, na vossa cabeça, a cor que preferem… cinza ou o tal esverdeado confuso. Pois então as portas que ligavam as salas eram dessa cor.
Uma das salas era o espaço de excelência para os livros. Caixas, caixotes, estantes com livros. Umas almofadas pelo chão. Uma ou duas mesas e umas cadeiras de madeira, velhinhas e crianças de várias idades. Não havia nessa sala mães ou pais a interferirem nas leituras.
Lembro-me muito bem de que havia sempre uma quantidade significativa de crianças que fazia uma leitura atenta, mesmo sem conhecer uma única letra. Faziam aquilo que os peritos chamavam, chamam, de “leitura por imagens”. E depois havia um grupo de crianças que se sentava no seu sítio preferido da sala e lia. Lia a saber as letras. Lia a saber ler. E muitas vezes liam até mais do que um livro.
Quando me sentia cheia de letras dentro de mim, a abarrotar de aventuras ou desejosa de colocar cá para fora tudo o que tinha lido avançava para uma das outras salas. Fazia eu isso e todos os outros ex-pequenos frequentadores assíduos e ávidos leitores. Perguntem-lhes se não era assim!
Numa das outras salas havia sempre muito risos, gargalhadas e os tais burburinhos. Havia uma parede com um espelho suficientemente grande para nos vermos nele aos pares, a trios… Num dos cantos, perto do espelho, tinha um baú cheio de roupas de muitas cores e feitios. Ao lado ficava o charriot. Confesso que esta foi uma das primeiras palavras estrangeiras que aprendi e adorava dizê-la… “vou buscar o chapéu ao charriot”, “pousei o lenço no charriot”… adorava! No tal charriot estavam chapéus com penas, sem penas, lenços, plumas… Havia ainda uma penteadeira. Um móvel tosco com um espelhito onde nos sentávamos a fazer penteados e a colocar os colares e brincos de mola.
No outro lado dessa sala estava uma barraca de fantoches com uma janela ampla de onde pendiam duas cortinas e ao seu lado um outro baú cheio de fantoches de luva e algumas marionetas de fios.
Naquela sala eramos quem quiséssemos ser! Fazíamos teatro, reproduzíamos o que tínhamos lido e brincávamos ao “faz de conta”. Não havia nessa sala mães ou pais a interferirem nas fantasias.
A outra sala, que por acaso é a terceira, mas podia muito bem ter sido a primeira ou a segunda, tinha um cheiro a lápis de cera, tintas, cola…
Havia por lá umas mesas e cadeiras e muitos materiais que apareciam como por artes mágicas quando precisava deles. Em cima das mesas tinha copos de iogurte ou latas de conservas vazias com lápis de cera, lápis de cor e marcadores, mas de resto não me lembro onde estavam os outros materiais.
Sei que se precisava de papel para fazer uma pintura no escaparate colocado a um dos cantos, logo a folha lá aparecia… como por magia. Se me sentava numa mesa para fazer uma colagem, de repente lá estava a cola, as revistas… como por magia. Não havia nessa sala mães ou pais a interferirem na criatividade.
O que eu gostava mesmo de fazer, nesse espaço, eram os meus próprios bonecos.
Adorava construir os fantoches que depois levava para a sala dois, que podia ter sido a três ou a um, e inventar histórias atrás da barraca com a minha pequena companheira de aventuras.
Em qualquer uma das três salas da minha biblioteca infantil não se ouvia “shiuuuu” ou “não podes rir assim” ou “este é um espaço de silêncio”. E também não me lembro de adultos a interferirem nas minhas, nossas leituras, jogos, brincadeiras, desenhos, pinturas ou construções.
Eles deviam lá estar. Elas. Mas sempre me convenci que deviam ser mágicas e que nós só as víamos quando precisávamos da ajuda delas e que tal como fadinhas coloridas nos apareciam, por magia, naquele momento preciso como se fossem iguais a nós e voltavam a desaparecer.
A minha biblioteca infantil era de facto muito mais do que só uma biblioteca. Que digam os ex-pequenos frequentadores assíduos e ávidos leitores vianenses!
Era… porque com o tempo…
Deixámos esse bocadinho da história para a parte 3?
É que ainda temos muito para falar sobre a minha biblioteca!
Sandra Lima
© 2021 | Sandra Lima